Deixa Estar




SARA FICARA BOQUIABERTA com a falta de respeito pela qual passara. Um ciclista (ou melhor, um idiota) quase a atropelara. Mas não suficiente com o quase, deixara sobre seu incrível vestido laranja de bolinhas brancas uma espécie de arte abstrata pós-moderna.
    Se ao menos tivesse ficado nisso, Sara poderia ter superado essa fase e sorrido durante o resto do dia, agradecendo a Deus e a todos por suas incríveis dádivas que sempre recebe. Talvez tivesse postado todas elas, como todos nós fazemos, tentando, dessa forma, garantir a todos que era super feliz e tinha uma vida realmente gratificante.
    Mas, não, Sara também tropeçara e atingira o solo molhado de uma forma espetacular, ficando de pernas para o ar. Queda tão espetacular que os que testemunharam a tragédia tiveram a obrigação de dar altas e demoradas gargalhadas.
   Depois de tamanhas decepções, Sara levantara-se, ainda atônica, e tentava encontrar um sentido em tudo aquilo. O maldito ciclista, tão apressado, sumiram. Deixara apenas um rastro de seu inoportuno trajeto.
   Será que Sara postaria sobre sua desventura? Faria algum "ao vivo" para seus amigos do Instagran? Quem sabe? Mas o celular - já danificado pelo tempo, pelo uso e pela água que penetrara agora seus minúsculos circuitos - não tinha mais potencial de trazer-lhe esse alívio social da modernidade.
   Bem, o que restava em tão deprimente realidade? Sara respirava ofegante e demorou a recuperar-se. Talvez, se não estivesse tão mal, poderia ter enxergado os R$ 50,00 molhado sobre o qual pisava. Mas a cédula não era mais do que mais uma folha seca para a realidade da garota.
   Felizmente, alguns prestaram-lhe socorro, menos um garoto que fora mais esperto e silenciosamente capturara o dinheiro perdida. Infelizmente, perdera-a alguns instantes depois, quando fora confundido com um criminoso por vestir-se como o popularmente chamado "pirangueiro" e capturado por um segurança.
    Sara desejava chorar por sua irritante realidade. Mas nossa sociedade diz que um adulto não pode perder o controle. Na verdade, não deveria mesmo não. Pelo menos não seria uma demonstração da desejada maturidade. Porém, às vezes a emoção exige. Sem mais o que fazer, a garota foi tomar o ônibus.
   Chegando na parada, um terrível alvoroço tomava forma. Um bandido acabara de assaltar todos que esperavam, impacientes, o ônibus. O segurança, que deveria ter socorrido a eles, acabara de dar umas caretadas em um garoto que poderia ser um marginal e, por isso, perdera a vista panorâmica de um assalto de verdade, com arma e tudo mais. Trágico.
   Sara poderia respirar aliviada. Não levaram seu belo celular. Nem mesmo causaram-lhe qualquer constrangimento. Não se machucara. E melhor ainda: seu ônibus estava chegando e, para sua enorme alegria, estava vago e assim continuaria, pois os 20 passageiros que nele entrariam acabaram de ser assaltados. Sara deveria agradecer mais.



De Alexandre Valério Ferreira




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