Rastros

Longa exposição. Foto: http://www.cafecomgalo.com.br

NÃO QUE HOUVESSEM mais rastros. Ainda assim, eles estavam lá. Invisíveis a todos, menos para mim. Por onde eu andava, via as marcas, ainda latentes, vivas, respirando, de histórias, conversas, sonhos. Tudo no meu caminho reverberando uma realidade dolorosa: nada havia mais.
   Depois que tudo acabou, só restaram os rastros. O quarto. A cozinha. A sala. As molduras na parede. Aquele arranhão no carro. Aquele instante em que derramei café nela às 6:12 da manhã, antes de sairmos para o trabalho. Estavam lá, ocultas, ainda assim, vivas.
 Rastros são assim. Não existem, mas existem. São visivelmente invisíveis. Só olhares atentos, carregados de uma lacerante nostalgia são capazes de enxergar os momentos que aqueles lugares testemunharam. Só quem viveu sabe o que é perder.
  Os rastros podem ser cruéis. Sua capacidade de nos retirar de dentro da concha - expondo-nos - comprimindo nossos olhos e forçando-nos a chorar é assustadora. Relembrar é viver, dizem. Em outras palavras, isso significa que um rastro é o mesmo que viver o momento em que eles foram gerados.
  Tem horas em que os rastros deixados em minha memória podem trazer alegria. Risos solitários, atemporais, anacrônicos, podem ressoar como consequência desses reencontros com o passado. As pessoas deixam marcas e essas marcas sobrevivem por muito tempo. Quanto mais forte o relacionamento, mais profundas são as cicatrizes.
  Rastros também são ilusórios. Constituem-se de meras projeções de nossas mentes sobre um dado momento da vida - um abraço, uma briga, um encontro - que já não existem mais. Uma mistura de mentiras e verdades, confundindo nosso senso de realidade. Deixando-nos atordoados entre o desejo enganoso de retornar a um passado que sumiu e sem forças para seguir num futuro incerto.
  Precisei de terapia para me colocar no lugar novamente. Aceitei (muito lentamente, por sinal) que os rastros da memória são captações de nossa mente sensível. Mas, assim como uma foto de longa exposição, a marca de luz deixada não reflete mais o atual estado de coisas. Na verdade, representa apenas uma mudança de situação, o movimento, que em um dado momento aconteceu.
  Pensar dessa forma também me faz refletir que o momento só existiu porque houveram mudanças. Sim, a graça das coisas está nos processos, no caminho, na viagem. Não é o ponto final em si que trás alegria. Ele é apenas a conclusão de uma série de alegrias e tristezas pelas quais passamos e que nos levam ao crescimento.
  Os anos me forçaram a crescer. Mas não é o tempo em si que nos trata. Claro, ele tem uma força e tanto. Porém, tive que ajeitar minha forma de percebê-lo e de encarar o que aconteceu. E, como dizem, o que passou, passou. Bola pra frente que atrás vem gente. 
  Essas afirmações parecem meras falácias. Acontece que, para a maioria dos casos, não é. Para avançar depois de uma perda precisamos de tempo, apoio e, em alguns casos, de psicoterapia. Porém, é necessário não desistir e nem se entregar à dor e à fantasia do passado.
  Falar isso é mole agora. Afinal, já estou a anos de distância daquele dia. Ainda assim, os rastros invisíveis continuam me confundindo às vezes. São momentos esquizofrênicos da minha vida. Aprendi a aceitá-los, compreender que fazem parte do processo de perda e de cura também. Viver é coisa difícil. Não significa que não seja fantástico e que valha a pena. Então, vamos lá subir mais um degrau.


De Alexandre Valério Ferreira

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